MIDAS

Fernanda tapou o grito com o dedo cortado. Uma gota de sangue na pia, perto do queijo e uma gota na camiseta, perto da testa da Twiggy. O silêncio na cozinha foi uma mistura de dó e arrependimento. Não devia ter pedido pra ela cortar mais queijo. Eu devia ter cortado o queijo. Fernanda já tava bêbada. Eu já tava bêbado. A gente nem ia comer mais queijo. Ninguém devia ter cortado queijo. A taça de vinho ficou parada na minha mão alguns instantes e só não ficou mais imóvel porque a taça dela tava em cima da pia, obviamente mais parada. Olhar a Fernanda lavando o dedo e ver a água rosa escorrer pelo ralo me fez pensar no Lucas, que tava de rosa quando passou mal no show de ontem e a gente teve que deixar tudo pra trás e levar ele embora. Foi nessa hora que as coisas começaram a fazer sentido na minha cabeça. Como eu não tinha reparado antes? Todo mundo em volta de mim começou a se machucar. Nessa noite eu não consegui dormir.

No caminho do trabalho, a avenida principal tava bloqueada, um motoqueiro foi atingido por um Toyota que trocou de faixa sem dar sinal, disse o homem que subiu fora do ponto. Quando cheguei no escritório, o elevador tava quebrado. Vânia, da contabilidade, tinha ficado presa quando descia pra fumar. Logo a Vânia que tem claustrofobia. No email, uma nota de falecimento do RH pros funcionários, seu Tino, vô da Clara, a telefonista. O resto do dia não teve mais surpresas. Mas foi só a terça-feira começar que coisas voltaram a acontecer. Uma mulher tropeçou na minha frente quando eu chegava no ponto. Um senhor bateu a testa no ferro dentro do ônibus. No almoço, uma menina se engasgou na mesa do lado. A TV me ajudava a ignorar as desgraças, diluindo as coisas ruins no meio de esportes e bobagens. É mais difícil prestar atenção na dor quando não dói na gente.

Isso já deve tá acontecendo faz um tempo. Tô tentando lembrar quantas vezes nas últimas semanas fui parar num hospital ou numa farmácia com algum amigo. Não consegui. Pior que quanto mais eu reparo, mais eu vejo desgraças e problemas acontecerem. Minha vizinha. Meu porteiro. O cara da banca. A mulher do café na esquina. Meu irmão. A Marina. Puta que pariu. A Marina. “Meo, cê precisa parar de machucar as pessoas” e saiu. Foi essa a última coisa que a Marina me disse antes de sair da livraria no dia que a gente terminou. Sabe aquelas coisas que as pessoas te falam e você não dá importância? A Marina sempre foi uma pessoa especial. Na minha vida e na vida de quem vivia em volta da gente. Todo mundo que queria um conselho, uma ajuda, ou uma opinião, falava com ela. Marina tinha virado uma espécie de trampolim na vida das pessoas. Até a minha vida foi outra no tempo que a gente viveu junto. Na verdade, tudo sempre deu certo pra Marina, mesmo antes da gente se conhecer. Nessa noite eu não consegui dormir, de novo.

“Meo, cê precisa parar de machucar as pessoas” foi a frase que ficou na minha cabeça durante dias. Eu gostava da Marina. Mas a gente foi deixando de se amar com o tempo. E com o tempo, minha vida foi virando uma merda. E a merda foi incomodando. E um belo dia a gente terminou com essa frase de trilha sonora. Bom, de lá pra cá as coisas só pioraram. Hoje, olhando esse monte de gente se machucando em volta de mim, vejo o quanto é difícil viver com essa responsabilidade. Cada dia, cada hora, alguém que eu gosto, conheço, convivo ou, simplesmente me relaciono, se machuca. Ora leve, ora grave. Ninguém sabe que a culpa é minha. Só eu e a Marina. Tem ficado cada dia mais difícil suportar isso. E eu sei que só me restam duas alternativas, suicídio ou voltar com ela. E de ambas as duas vou me arrepender.

O telefone toca pela décima quinta vez até cair na caixa postal. Quantas vezes um telefone toca em média até cair na caixa postal? As pessoas ainda usam caixa postal? Eu odeio quando deixam recado pra mim. "Marina? É o Fran. Será que a gente podia..." foi a única coisa que deu tempo de gravar. Pensei demais antes de falar alguma coisa. Dois dias. Foi o tempo que passou até eu receber uma mensagem. Marcamos um café. Precisava conversar. Marina sabia de tudo que eu tinha pra dizer. De cada problema. De cada detalhe. De cada decisão. Marina não gosta mais de mim também. E mesmo assim, decidimos voltar. Foi uma decisão muito triste e amarga. Mas não era pelo nosso bem. Era pelo bem de todo mundo que cercava nossas vidas. Era pelo bem de amigos, conhecidos e familiares. Nessa noite, ninguém mais se machucou. Além da gente.

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