Heroína

A médica plantonista vem pelo corredor. Vai ficando maior, maior e maior até chegar perto. – Mãe, não tem seringa na enfermaria, vô passar um xarope pra ele – ela diz. É sempre a mesma coisa, no pronto-socorro nunca tem nada. Nessa hora, Graça lembra do serviço. Trabalha há seis anos numa empresa de materiais hospitalares, e seringa quase não falta. Depois do xarope, os dois se acomodam nas cadeiras. Graça olha o relógio na parede branca rachada atrás da recepção do pê-ésse. Duas e quarenta e seis da manhã. Dormem até o primeiro ônibus voltar a circular. É domingo. Ainda bem.

Em casa, Graça limpa, lava e passa tudo o que acumulou da semana. Paulinho dorme. Tosse danada. O dia vai ser longo. Cleber não está em casa pra ajudar. Na verdade, quase nunca está. Trabalha de pê eme e faz biscate de segurança nos dias de folga. Os vizinhos não sabem, ali no Morro da Providência, o emprego não seria bem-vindo. O dia passa e Cleber chega. – Não faz barulho que vai acordar o menino –  explica a mãe. O pai senta no colchonete, acarinha a cabeça do pequeno. De repente tudo embaça. Cleber Chora.

Quatro e meia da manhã. O relógio verde quadrado avisa que a semana recomeça. Graça levanta e prepara o café ralo pra economizar no pó. Cleber aparece na cozinha, sorri e pergunta se o menino acordou a noite tossindo. Paulinho ainda é pequeno pra escola e na creche da prefeitura, Graça não conseguiu vaga, por isso fica na vizinha, que, junto com o aluguel do barraco, a água, a luz, o telefone, o gás, a comida e a loteria, leva todo o dinheiro do casal. Às cinco e dez, descem o morro sentido Central do Brasil. Vão juntos até Madureira, de lá, Graça vai pra Duque de Caxias e Cleber, quarenta e seis minutos pro outro lado. Santa Cruz podia ser mais perto.

No ponto, Graça põe a mão na bolsa pra pegar a condução e acha uma seringa. Lembra do serviço na hora. E do pê-ésse. E da bronquite do menino. Será que tá melhor? Quer ligar do orelhão, mas ainda está cedo, prefere não incomodar. Entra no ônibus espremida e pega lugar pra sentar. Chega atrasada na firma. – O ônibus quebrou – fala. Mentira. Dormiu e perdeu a parada. Lá, ninguém sabe do filho com bronquite, do aluguel e das contas que decoram a porta bamba da geladeira. Ninguém sabe que mora na comunidade.

O dia de Cleber também não está sendo muito bom. Toda vez que o filho fica doente ele se culpa por não ser mais presente, não ter mais dinheiro, não morar melhor, não viver melhor, não ter nada melhor do que queria. – Tiros e perseguição, copiou? – o rádio pergunta. O parceiro de Cleber resmunga, prefere busca e apreensão. A qualidade da administração na secretaria de segurança pública do Rio de Janeiro, ensinou o Boca a gostar de suborno.

O tiroteio não deu em nada. Cleber prefere desse jeito, não está com cabeça hoje. Param na padaria do Antunes pra almoçar. – O de sempre – pedem os dois. O próprio Antunes leva o pê efe. – Ficaram sabendo do Marcão da Golçalvez? – Antunes puxa assunto. Boca diz que não com a cabeça. Apesar do apelido não é muito de papo. – Morreu na festa de noivado, acham que é dívida – continua. Só que Cleber já não ouve mais nada. Noivado. Casamento. Por isso Graça tava desanimada hoje de manhã. Dois anos. Como foi esquecer.

Chegar na própria casa a noite é uma aventura. A viela escura recebe Cleber sem sombra. A bolsa da metalúrgica esconde a farda. Mas hoje chega diferente, chega um pouco mais feliz. Vai faltar no bico amanhã. Pra Graça ainda é surpresa. Paulinho também vai ficar contente quando acordar. A porta range o som do alívio de ter o marido em casa. Cleber abraça a mulher. Coloca a bolsa no chão e beija o filho sem barulho. O marido e o buquê embaçam. Agora é Graça que chora.

No quintal, sob o teto preto do céu, sentam num tijolo baiano. O banco improvisado faz parte do sonho da reforma. Conversam projetos distantes. Ele conta do trabalho. Dos perigos. Da dificuldade de conviver com a corrupção. E do desejo de sair dali, mudar pr’um lugar melhor. Ela não conta sobre seus problemas. Muito menos das  coisas que rouba da empresa. A elite do tráfico de heroína comanda o morro em segredo já faz um tempo, e abastecer os viciados que sabem do marido policial, não é fácil. Lembra do serviço na hora. E do pê-ésse de novo. E da bronquite do menino. Será que tá dormindo?

Lá dentro, entre uma tosse leve e outra, o menino acorda. Acostumado com a falta da mãe, não chora. Não chama. Levanta e vê a bolsa do pai. Feliz, procura doce como foi acostumado a achar. No lugar, um brinquedo novo. Ansioso pela felicidade de Graça, Cleber deixou a mala do jeito que estava quando chegou do serviço. A farda, a cinta, a arma. O menino leva na mão o arrependimento do pai. A janela aberta mostra a cidade carioca brilhando lá embaixo, longe. Ele olha as luzes, mira com ingenuidade e aperta o gatilho, sem fazer ideia do que vai apagar.

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